REVISTA DE IMPRENSA LITERÁRIA dá hoje a palavra a Rui Couceiro, o décimo primeiro entrevistado de uma série dedicada a autores portugueses. Todas as entrevistas anteriores estão acessíveis a partir daqui.
Amanhã: Julieta Monginho.
Sexta-feira: Sandro William Junqueira.

Se pudesse escolher uma ou duas pessoas para lerem o seu livro mais recente, quem seriam?
Os meus avós maternos, que eram do Porto. Ele, porque, embora tenha trabalhado toda a vida como escanção de Vinho do Porto, era na essência um poeta, que passava todo o tempo livre à escrivaninha, a versejar. Ela, porque, de modo surpreendente, descobriu o prazer da leitura perto dos noventa anos.

Como lida com o bloqueio criativo?
O que tende a bloquear-me é a vida fora da escrita, com a impertinência das suas imposições de agenda. Mas, para não fugir à pergunta, posso dizer que, a dado momento, percebi que escrita de ficção é como a história de Teseu e o Minotauro – é só irmos desenrolando até chegarmos ao final. E se não estiver a funcionar, quando o desenrolamos de uma forma, se o caminho não for aquele, viramos o novelo ao contrário e desenrolamo-lo de outra. Não quero com isto defender aquela ideia de que as histórias já estão escritas e de que nós só as descobrimos ou veiculamos. O que defendo é mais simples: a escrita de ficção é um processo de sequências e subsequências lógicas. Se eu decidir que uma personagem tem dezassete anos, não irei dizer de seguida que tem um neto. Portanto, a base da construção de um enredo, ou da receita que estamos a cozinhar, se preferirmos, tem que ver com decisões e consequências. Portanto, o acontecimento seguinte é sempre determinado pela escolha presente. Mas, claro, o condimento que faz a diferença na receita é muitas vezes a quebra dessa lógica: são os momentos em que o autor se lembra de colocar um homem a transformar-se num inseto, a Península Ibérica à deriva no mar, ou então de dizer que o avô Manuel levou o neto à escola de trotinete, por ele próprio, o avô, só ter dezassete anos.
Qual foi o melhor ou o pior conselho de escrita que já recebeu?
O melhor não sei já onde o apanhei, mas consolidou uma tendência que eu já vinha adquirindo de modo intuitivo – validou-a, por assim dizer. Mais tarde, encontrei-o muito bem sistematizado por Mario Vargas Llosa no formidável História de um Deicídio. À utilização, como matéria-prima, dos interesses mais profundos, das inquietações, das angústias e das obsessões que eu vinha treinando nas coisas que escrevia, e que são muito visíveis nos meus dois livros, Vargas Llosa chama emprego dos demónios do escritor. Para Cem Anos de Solidão, Garcia Márquez convocou todos os demónios que o habitavam – experiências, crenças, memórias, traumas, medos, sonhos, fantasias, etc. E deu o resultado que deu. Que força, ou fervor literário, existirá num romance sobre o fascinante mundo do reiki, ou dedicado à reprodução dos morcegos, se nenhum interesse, digamos assim, eu tiver no assunto?
Quem é a pessoa, ou qual é o lugar ou prática que teve o maior impacto na sua formação como escritor?
A pessoa que, em boa hora, me sugeriu – e já não sei quem foi – que lesse A Vida e Opiniões de Tristram Shandy, de Lawrence Sterne. O encontro com essa obra formidável, na excelente tradução de Manuel Portela, mostrou-me que tudo é possível dentro do mesmo livro.
Há alguma parte da sua rotina de escrita que poderia surpreender os seus leitores?
O facto de, muitas vezes, escrever ou ler de pé? Ou de, há vários anos, apoiar o teclado num livro de António Lobo Antunes?
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Rui Couceiro nasceu no Porto, em 1984. Trabalha no meio editorial desde 2006 e é, desde 2016, editor da Bertrand, tendo a seu cargo a chancela Contraponto. É membro do Conselho Cultural da Fundação Eça de Queiroz. Escreve para a Visão. Abandonou uma tese de doutoramento em Estudos Culturais, para escrever o seu primeiro romance, Baiôa sem Data para Morrer (2022), publicado em Portugal pela Porto Editora, no Brasil pela Biblioteca Azul e prestes a sair em Espanha pela Siruela. O livro foi distinguido com o Prémio Literário Manuel de Boaventura 2022 e finalista do Prémio Pen Club Português 2023. Lançou, em 2024, também pela Porto Editora, o seu segundo romance, Morro da Pena Ventosa.
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Um jovem autor que conheci pessoalmente na Feira do Livro do Funchal 2025, na sequência da apresentação do livro “A Desobediente”, por Patrícia Reis.
Nesta sequência irei estrear-me, brevemente, com o título “Morro da Pena Ventosa”…
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