Gonçalo Câmara em entrevista à RIL: “Acredito profundamente na premissa do Hemingway de começar com uma frase verdadeira. E se partimos da verdade, o que vem depois é extraordinário”

REVISTA DE IMPRENSA LITERÁRIA publica hoje mais uma entrevista. Desta vez, Gonçalo Câmara. É a 9.a de uma série dedicada a autores portugueses (todas as entrevistas podem ser lidas aqui).

Amanhã: Margarida Rebelo Pinto.

Quarta-feira: Rui Couceiro.

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Se pudesse escolher uma ou duas pessoas para lerem o seu livro mais recente, quem seriam?

Alguém que me pudesse ler com verdade. E aqui distribuiria por dois tipos de leitores distintos: um que nunca tenha lido nada meu ou até mesmo não esteja habituado a ler livros de todo. Outro que seja conhecedor e devorador de literatura. Os dois são importantíssimos e os dois deixarão críticas extremamente importantes e válidas. O primeiro porque me ajuda a voltar a esse estado virgem em que as palavras ainda picam, ainda inquietam e surpreendem. O segundo porque já não se deixa “enganar” com facilidade, e é desses que também nascem os elogios mais discretos e transformadores.

Como lida com o bloqueio criativo?

Depende do estado de espírito. Inquieta-me, muitas vezes. Às vezes tento forçar a escrita, ainda que fique um desastre, porque sei que faz parte. Outras vezes, largo. Vou andar, passear o cão, cozinhar, limpo a casa, meto música. Se for de noite, vou dormir. Tudo menos ficar a olhar para o vazio à espera de um milagre. Não gosto de romantizar o bloqueio. Uma vez, o Ricardo Araújo Pereira falou sobre isso, a propósito do método de John Cleese, creio eu. Cleese dizia que quando empanca, vai dormir. E que no dia seguinte, é clara como água a saída do bloqueio. Dormir sobre o assunto faz bem a tudo. À escrita e à vida.

Qual foi o melhor ou o pior conselho de escrita que já recebeu?

O pior talvez tenha sido: ” Escreve como se…”. Tudo o que possa vir a seguir a esta frase, em determinados momentos, pode prejudicar o autor. Porque eu acredito profundamente na premissa do Hemingway, que acaba por ser o melhor conselho, de começar com uma frase verdadeira. E se partimos da verdade, o que vem depois é extraordinário. E isto aplica-se também a romancistas, que têm a capacidade de ficcionar tudo e mais alguma coisa. Quando a primeira frase é profunda e verdadeira, está quase ganho. Escrever com verdade não é sobre escrever factos, mas sim partir do real, é acreditar profundamente no que estamos a sentir para escrever. É um bom antídoto contra a escrita pretensiosa.

Quem é a pessoa, ou qual é o lugar ou prática que teve o maior impacto na sua formação como escritor?

Obviamente que há referências, de Gabriel García Marquez a Hemingway, de Paul Salopek a Paul Theroux. Da ousadia de Esteves Cardoso à simplicidade de Sophia. Mas, atrevo-me a responder da seguinte forma: todas as estradas secundárias. Mais do que uma pessoa ou um livro, o que me ensinou a escrever foram os desvios. Os sítios onde ninguém pára, as aldeias sem multibanco, os bares com jukebox encravada de madrugada, os aeroportos às 5h da manhã, os comboios lentos na Ásia. Há uma escrita que só se encontra em viagem. Ter passado muito tempo sozinho, em silêncio, em viagem, a observar, moldou-me para sempre. A curiosidade sempre me moveu e talvez tenha sido ela a minha maior formadora.

Há alguma parte da sua rotina de escrita que poderia surpreender os seus leitores?

Não tenho uma rotina sagrada. Posso escrever à meia-noite, às 7 da manhã, no telemóvel, à pressa num café ou em silêncio absoluto numa casa perdida no mato. Mas talvez o facto de escrever de pé e rever sentado, possa surpreender alguns.

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Gonçalo Câmara é um eterno apaixonado por viagens e por palavras. As da rádio e as dos textos. É também autor do podcast Em terra de ninguém, da National Geographic. Em 2013 publicou o seu primeiro livro de crónicas Já dizia O Outro, um retrato de uma geração e uma sátira social. A Entre o Deserto e a Montanha, o seu primeiro livro de poesia, seguiu-se a Árvore Que Não Fazia Sombra e “Nuvem Cortante“. (via Wook)

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One comment

  1. Ora bem, gostei da entrevista.Não conhecia o autor, irei em busca deste título.Vou inclui-lo no meu plano de leituras no masculino – autores de língua portuguesa, que irei iniciar brevemente.

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