Clara Macedo Cabral em entrevista à RIL: “Tenho de ponderar bem a que assunto vou entregar mais uns quantos anos de vida, antes de pisar aquela antecâmara escura, silenciosa, solitária, da qual não sei nem como nem quando irei emergir”

A convidada de hoje da Revista de Imprensa Literária é Clara Macedo Cabral, autora da biografia Enterrem-me na Vertical, a sua mais recente obra.

Amanhã: Miguel d’Alte.

Sábado: Ana Margarida de Carvalho.

Todas as entrevistas anteriores estão acessíveis a partir daqui.

Boas leituras.

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Se pudesse escolher uma ou duas pessoas para lerem o seu livro mais recente, quem seriam?

Gostaria muito de me sentar com os meus avós, à memória de quem o Enterrem-me na Vertical é dedicado, e contemplando os seus rostos, tal como os recordo e os esqueci, perguntar-lhes se este livro os satisfez. Se acaso se revêem no retrato, na reconstituição que fiz das suas vidas. Entre a família, entre o grande lote de amigos e familiares que tive a felicidade de descobrir e entrevistar, muitos dos quais transmontanos, sei que pacifiquei uma memória que tinha os seus espinhos. No núcleo familiar compreendemos agora melhor, respeitamos e admiramos as escolhas que os meus avós fizeram, os determinaram e nos determinam, e sabemos que aquilo que no passado provocou dor, sofrimento, sentimentos de abandono, aquilo a que os psicólogos chamariam de trauma familiar se transformou, se depurou e hoje em vez de ser uma carga que nos atira para baixo nos dá força, alento, seiva para viver.

Como lida com o bloqueio criativo?

Não sei o que isso é. O que me acontece é algo diferente. Cada vez que termino um livro digo, este agora foi o último, no início não era assim mas agora quero cada vez menos ter de iniciar outro. Ou seja, quero capitular, quero render-me, cada livro é um combate extenuante no topo de outros combates que estamos a enfrentar na vida, e por isso alguém dizia que não há alturas ideais para escrevermos, no meio da falta de dinheiro, de divórcios, de lutos, de problemas de saúde, escrevemos ainda e sempre. O mundo está pesado, as pessoas lêem cada vez menos, quero mesmo escrever mais alguma coisa?
Mas depois deste meu anúncio, desta vontade de querer desesperadamente desistir, e talvez por rotina, talvez porque não sei fazer mais nada, lá acabo por recomeçar, embora seja cada vez mais selectiva no tema, pois tenho de ponderar bem a que assunto vou entregar mais uns quantos anos de vida, antes de pisar aquela antecâmara escura, silenciosa, solitária, por onde só os meus passos se arrastam, da qual não sei nem como nem quando irei emergir. Antes de iniciar aquela peregrinação suada, de dias amortalhados, junto a uma secretária, a um écran, procurando dentro de livros alguma dúvida e detalhe menor, de dias que por vezes rendem páginas e ficheiros que não vão entrar no trabalho final. Mas agora já sei que o meu oitavo livro haverá de nascer, e que apesar do seu custo, me dará alegrias como todos deram.

Qual foi o melhor ou o pior conselho de escrita que já recebeu?

Sugira em vez de dizer tudo e em vez de afirmar. Virgínia Woolf já dizia isso:”suggest more than they can state”. Os diálogos e as metáforas são difíceis, se não estiver muito à vontade, evite-os. Não me lembro de nenhum mau conselho.

Quem é a pessoa, ou qual é o lugar ou prática que teve o maior impacto na sua formação como escritora?

Londres e o Reino Unido, onde vivo há vinte anos. A memória, o exílio, o mundo de onde se parte e o mundo aonde se chega, o choque cultural, as perdas e os ganhos, as pertenças que se acumulam, tudo isto são interesses/ assuntos que eu não teria desenvolvido tão acentuadamente se não tivesse um dia saído de Portugal. E os meus longos passeios pelos parques londrinos são uma prática tão essencial como os dias que passo dentro de uma biblioteca a escrever.

Há alguma parte da sua rotina de escrita que poderia surpreender os seus leitores?

Creio que não. Prefiro escrever num lugar fora de casa, na companhia de livros, de muitos livros de alto a baixo, da sua presença, por isso procuro as bibliotecas, embora também goste de escrever em cafés repletos de conversas, barulho, pessoas.

Sou flexível, faz-me no entanto falta a luz. Sei que nos dias longos de inverno é mais difícil a partir das quatro da tarde, quando já é breu nesta ilha, continuar na biblioteca, e os cafés aqui também fecham cedo. Mas escrever é entrar noutro mundo, onde continuamos, onde resistimos não obstante as condicionantes externas. A piscina e o yoga ajudam-me por vezes a decidir o caminho por onde o livro avançará.

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Clara Macedo Cabral, a viver em Londres há quase 20 anos, tem encontrado nessa encruzilhada de culturas a fonte para a sua escrita. Depois do primeiro livro Há Raposas no Parque (QuidNovi,2009) nomeado para o Prémio Talento, publicou O Inverno das Raposas (Orfeu, 2011) e Lisbon Story (Principia, 2013). Seguiram-se O Último Rei de Portugal e a Maggs: uma Aliança Anglo-Lusa (Fundação da Casa de Bragança, 2015) e A Inglesa e o Marialva: um amor na arena (Casa das Letras, Leya, 2018), romance baseado na vida real de uma inglesa no Portugal dos anos 60 e que integra o Plano Nacional de Leitura. Em Diário da Bela Vista (Junta de Freguesia da Estrela, 2020) relatou-nos a experiência familiar dos dias da pandemia repartidos entre Lisboa e Londres. É licenciada em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e Mestre em Literatura Comparada pela Universidade Nova de Lisboa. Colabora com artigos de opinião e crítica literária na imprensa nacional, sendo presentemente correspondente do Observador em Londres para assuntos culturais. É membro da Equipa de Investigação Faces de Eva, Estudos sobre a Mulher, e foi júri do Prémio Literário Maria da Nóbrega, instituído pela Câmara Municipal da Mealhada em homenagem à sua família e atribuído pela primeira vez em 2024. (via Wook)

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