Imagine este cenário: é sexta-feira. Sai de casa e dirige-se ao quiosque mais próximo. Compra o jornal que mais lhe agrada e senta-se na esplanada de um café. Arrisquemos um pouco: a esplanada fica mesmo em plena praia. Acompanhado(a) pelo som das ondas do mar, vai folheando o jornal, tranquilamente.
Quando termina, apercebe-se de que deixou em casa o livro que anda a ler. Pânico. E agora, o que fazer? Vai-se embora? Relê o jornal?
É nesse momento que, vindo lá do fundo do seu scroll, lhe aparece mais uma entrevista RIL, bem fresquinha. Vai dizer que não está curioso(a) para conhecer as respostas de Ana Cristina Silva?
Todas as entrevistas anteriores estão acessíveis a partir daqui.
Amanhã: Joaquim Arena.
Domingo: Maria Saraiva de Menezes.
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Se pudesse escolher uma ou duas pessoas para lerem o seu livro mais recente, quem seriam?
O meu último livro El-rei, Nosso senhor, Sebastião José é um romance biográfico sobre o poder. Portanto escolheria políticos mais ciosos do seu poder do que do bem- estar da comunidade. Se o Trump fosse mais inteligente não me importaria que fosse o Trump a lê-lo, mas ele não teria capacidade para descodificar a mensagem subjacente. Foi por causa do Trump que escolhi escrever sobre o marquês, apesar do marquês de Pombal ser várias vezes mais inteligente do que Trump.

Como lida com o bloqueio criativo?
Eu nunca tive propriamente bloqueios criativos. Eu uso uma técnica que descobri por uma entrevista que o Paul Auster também usava: deixo pistas para escrever o que vem a seguir. Agora tenho o problema da falta de tempo porque sou professora universitária e a escrita é muito complicada de gerir. Uma coisa que tive duas vezes que é diferente de um bloqueio é uma espécie de depressão literária desencadeada pelas características do meio literário português. A última foi a seguir ao Marquês. A minha editora na altura tinha falta de gente na Comunicação e o livro quase que não foi comunicado. Segundo um professor Brasileiro da Cátedra do Marquês este é o primeiro romance biográfico sobre o Marquês de Pombal desde o século XIX e não foi objeto sequer de uma recensão num jornal. E imagine o trabalho que me deu no meio dos meus múltiplos afazeres universitários. Como as editoras hoje em dia se regem sobretudo por critérios de mercado, a cobertura mediática torna-se importante para a continuidade de um autor. E o que está em causa muitas vezes não é o mérito, mas a rede de contactos. Vou-lhe dar um exemplo muito concreto: eu ganhei o Prémio Fernando Namora com um livro que se passa na Roménia, «A noite não é eterna» (livro aliás que só teve uma única crítica), e recentemente Portugal foi o convidado da feira do livro de Bucareste. Não houve ninguém que se lembrasse de me convidar e não conheço mais nenhum autor português que tenha um livro passado na Roménia. Isto é apenas uma ilustração de como as coisas se passam.
Qual foi o melhor ou o pior conselho de escrita que já recebeu?
O recentemente falecido Nelson de Matos deu-me dois conselhos e eu não segui nenhum deles. Ter cuidado com uma editora em particular, que era a minha da altura. E tinha razão. O outro foi ter de aparecer em certos sítios para começar a ser notada. E eu não percebi o que ele queria dizer. Andava sempre cheia de trabalho, tinha lá tempo para aparecer. Ou escrevia ou aparecia e não sabia bem onde.
Quem é a pessoa, ou qual é o lugar ou prática que teve o maior impacto na sua formação como escritora?
Marguerite Yourcenar. Sempre quis, como ela, conseguir escrever romances históricos que não fossem apenas a ilustração de uma época, mas que salientassem os traços da natureza humana independentemente da época histórica.
Há alguma parte da sua rotina de escrita que poderia surpreender os seus leitores?
Não há surpresa nenhuma em tentar arranjar todo tempo possível num conjunto complexo de afazeres. A minha profissão não é ser escritora, mas professora universitária e é aos seus afazeres que tenho de corresponder em primeiro lugar. Muitas vezes não tive férias para não perder o fio à meada de um romance que é uma coisa importante para quem escreve e difícil de conseguir no meio do trabalho. Eu adoro escrever, por isso não lamento ter perdido tantas férias (também adoro o mar e o sol), mas muitas vezes tive a sensação que atirei livros para o meio do mar… até porque os livros, hoje em dia, tem a duração de um yougurte.
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Ana Cristina Silva nasceu em Lisboa e é professora universitária no ISPA – Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida na área de Aquisições Precoces da Linguagem Escrita, Ortografia e Produção Textual. Autora de 16 romances e de um livro de contos, foi três vezes finalista do Prémio Literário Fernando Namora (2011, 2012 e 2013), que venceu em 2017 com o romance A Noite Não é Eterna. Recebeu também o Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues pelo romance O Rei do Monte Brasil, em 2012.
Depois de Bela, biografia ficcionada de Florbela Espanca, e de À Procura da Manhã Clara, retrato ficcional de Annie Silva Pais, filha do último diretor da PIDE, publica agora El-Rei, Nosso Senhor, Sebastião José, o seu terceiro romance com chancela Bertrand Editora. (via Wook)
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