Dora Gago em entrevista à RIL: “Houve um tempo em que escrevia ao som das trovoadas, sobretudo poesia. Por vezes, quando havia falhas de electricidade, os versos surgiam à luz dos relâmpagos, em linhas tortas”

E que tal mais uma entrevista RIL para animar a semana? Hoje proponho-lhe Dora Gago, cujo livro mais recente vai buscar o título a um verso de Natália Correia: Flores de Cinza (Edições Humus).

Todas as entrevistas estão acessíveis a partir daqui.

Amanhã: José Gardeazabal.

Sexta-feira: Ana Cristina Silva.

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Se pudesse escolher uma ou duas pessoas para lerem o seu livro mais recente, quem seriam?

O meu livro mais recente intitula-se Flores de Cinza, tem um prefácio de Maria João Cantinho, saiu em finais de Março, na coleção 12catorze das edições Húmus.  São poemas muito curtos, um percurso interior que tem Macau e uma vivência de dez anos desse território como pano de fundo. Até ao momento, logo após a publicação, foi lido por duas “leitoras de sonho”, que deixaram o seu testemunho: a Sandra Sousa, professora na Universidade da Flórida Central, nos Estados Unidos, que escreveu uma recensão maravilhosa, publicada na Revista Caliban, a Sílvia Quinteiro, da Universidade do Algarve, que o apresentou na Biblioteca Municipal de São Brás de Alportel…

De um modo geral, gostaria que fosse lido por quem tivesse a mente aberta para a partilha de percursos de solidão, exílio, regressos, viagens rumo aos outros, às outras culturas, mas também às nossas próprias transformações, ao modo como sempre nos podemos reinventar nos momentos mais duros.

Como lida com o bloqueio criativo?

Confesso que o meu principal problema é mais a falta de tempo e a dispersão do que os bloqueios criativos. Mas fazer uma caminhada é sempre uma boa solução.

Qual foi o melhor ou o pior conselho de escrita que já recebeu?

O melhor tem a ver com a necessidade constante da reescrita, do trabalho, o deixar repousar o texto durante um tempo, antes de regressar a ele.  O pior, não propriamente relacionado com o acto de escrita em si,  foi-me dado ainda na adolescência, quando alguém me disse que não deveria mostrar a ninguém o que escrevia, pois isso só revelava muita insegurança. Foi uma ideia que interiorizei, da qual levei muito tempo a libertar-me.

Quem é a pessoa, ou qual é o lugar ou prática que teve o maior impacto na sua formação como escritora?

Para além dos muitos escritores e escritoras que tenho lido e continuarei a ler, houve um lugar que foi essencial na minha formação: Macau. Esse lugar que visitei em 1991 graças a um prémio de escrita, que foi a minha primeira entrada num outro universo, ao qual regressei em 2012 como professora da Universidade de Macau (onde permaneci dez anos), a partir do qual fiz inúmeras viagens para outros países, foi essencial para mim. Embora tenha começado a publicar em 1997, e a experiência no Uruguai em 2001-2002 também tenha sido muito importante, Macau, um lugar único e sui generis no planeta, proporcionou-me um alargamento de horizontes, com o qual nunca tinha sequer sonhado.

Há alguma parte da sua rotina de escrita que poderia surpreender os seus leitores?

Houve um tempo em que escrevia ao som das trovoadas, sobretudo poesia. Por vezes, quando havia falhas de electricidade, os versos surgiam à luz dos relâmpagos, em linhas tortas. Também alguns textos nasceram em aviões, escritos em guardanapos de papel, que, por vezes, derretiam na mala, se algo se entornava…Neste caso, talvez possamos falar de uma “estética de derretimento” da escrita… (riso)

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Dora Gago nasceu em São Brás de Alportel (Algarve) é doutorada em Literaturas Românicas Comparadas pela Universidade Nova de Lisboa (2007), Mestre em Estudos Literários Comparados e licenciada em Português-Francês pela Universidade de Évora. Durante os últimos dez anos lecionou na Universidade de Macau, primeiro como Professora Auxiliar, depois como Professora Associada de Literatura, tendo sido vice-diretora e diretora Departamento de Português.
Foi também professora do ensino secundário, Leitora do Instituto Camões na Universidade da República Oriental do Uruguai (Montevideu, Uruguai) investigadora de pós-doutoramento na Universidade de Aveiro e pós-doc visitante na Universidade de Massachusetts Amherst (Estados Unidos).
Apresentou comunicações em múltiplos Congressos nacionais e internacionais (Estados Unidos, Uruguai, Japão, França, China, Turquia, Espanha, Itália, Áustria), assim como palestras por convite. Tem participado também em festivais literários (ex: “Long Night of Literatures” 2022, Nova Deli, Índia)
É autora de várias publicações na área da Literatura Comparada, entre as quais se destacam: Uma cartografia do olhar: exílios, imagens do estrangeiro e intertextualidades na Literatura Portuguesa – Finalista dos Prémios de Ensaio do Pen Club 2021 e Imagens do estrangeiro no Diário de Miguel Torga (Fundação Calouste Gulbenkian, 2008). É colaboradora de diversos centros de investigação de universidades portuguesas: CETAPS, CHAM (Universidade Nova de Lisboa), Centro de Línguas e Culturas (Universidade de Aveiro), CEC (Faculdade de Letras de Lisboa).
Enquanto ficcionista, está representada em antologias de contos coletivas, tem colaborado com textos de ficção em diversas revistas e jornais, nacionais e internacionais. Publicou, entre outros livros: A sul da escrita (Prémio Nacional de Conto Manuel da Fonseca em 2006), As Duas Faces do Dia (Menção honrosa no Prémio Literário Florbela Espanca), Travessias, Contos Migratórios (2014), A Matéria dos Sonhos (2015), Floriram por engano as rosas bravas (2022), Palavras Nómadas (vencedor do Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, da APE em 2023). Foi distinguida também com: o Prémio de Conto Manuel Laranjeira (Espinho, 2008), Prémio de Conto, Almada (2005), Prémio Literarius (Silves, 2004), entre outros.

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